Vamos fazer um pão-de-ló?

Pão de ló. Foto de Luís Neves.

Fazemos parte desta história quando seguimos uma receita apurada por ancestrais e passamos o testemunho. Nada ali é desnecessário ou supérfluo. O esplendor resulta da simplicidade e do rigoroso controlo de todas as condições. E a melhor notícia, ao alcance de todos. 

Não conheço ninguém que não goste de pão-de-ló. Em qualquer festa, é o centro das atenções na mesa e nos comentários gastronómicos. 

“Está tudo maravilhoso, mas este pão-de-ló …”, é recorrente ouvir-se. “Mas foi feito por ti?”, é a deixa seguinte. Segue-se o terceiro acto da peça: “Mas como consegues?”, perguntado com incredulidade. 

Cresci com pão-de-ló, versão de Soure, em todos os momentos de celebração. “Nunca fica igual, mas está bom”, repetia-se. 

Generosamente a minha mãe partilhava a receita e ninguém conseguia fazê-lo. Achavam que as quantidades estavam aldrabadas. Ficou célebre na família o queixume da prima Micas que durante anos chorou a quantidade de ovos que estragou sem nunca conseguir chegar ao ló…

Em determinados meios era comum guardar segredo do receituário, tesouro de família, para brilhar e sobressair nos momentos certos. Pequenos poderes. Perderam-se assim algumas pérolas e saberes gastronómicos. Coisas da Cultura sociológica de gente que não percebia que só a partilha dos ingredientes e processos enriquece e faz sobreviver um saber/sabor. Egoísmo.

O mais engraçado é que esta receita específica de pão-de-ló era uma entre várias do livro O Mestre Cozinheiro. À mão de qualquer um, portanto. Ninguém acreditava. 

No dia em que trocou de forno, a minha mãe perdeu o pé e o controlo da temperatura e tempo de cozedura, teve vários desaires. O bolo acabava em torradas… Algumas vezes esquecia-se, passava tempo demais no forno e… fazia outro. Lá vinham outra vez as torradas.

Tempo e temperatura. Ora aí está o “segredo”. Para ficar com molho mas sem sabor a ovo cru, a temperatura e o tempo correctos são ao grau e ao segundo. Só a experiência e mão na massa permite conhecer o forno e chegar lá…ao ló! 

O mais emocionante é que qualquer um de nós pode cozinhá-lo dada a simplicidade do processo. Fazê-lo é estar à altura de um legado, quase sempre de origem conventual, que vive e se perpetua em cada fatia partilhada.

Vamos então fazer parte desta história? Escolhemos um, por exemplo, o de Alfeizerão, localidade entre as Caldas da Rainha e São Martinho do Porto. A receita e os procedimentos da confecção foram-me passados pela amiga Ana Cristina Rodrigues. É simples. Bate-se nove gemas e mais três ovos inteiros com sete colheres de sopa rasas de açúcar, durante 20 minutos. Depois incorpora-se três colheres de sopa de farinha fina. No forno, previamente aquecido a 200 graus, coze-se o bolo enformado em papel vegetal, entre 15 a 17 minutos.  

Não há segredos, apenas experimentar uma vez e verificar se está no ponto. Dependendo do forno, pode precisar de mais uns segundos. É fina a fronteira entre o ligeiramente cru ou cozido de mais, sem molho. 

Acertado o tempo, é repetir a métrica. Quando sai do forno abate e engelha. Ah, uma dica - é melhor no dia seguinte. Está tudo dito. Vão fazer um brilharete e ser parte da gloriosa história da cultura gastronómica portuguesa, secção doçaria conventual.

Bom proveito e “não digam que vão daqui”. 

Sugestão de Leitura: O Mestre Cozinheiro, Colecção de Laura Santos. Só neste livro, há meia dúzia de receitas de pão-de-ló (Soure, Trindade, Minho, Ovar, Alfeizerão…).

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