Conventos: laboratórios de doces  

Sericaia. Photo by Filipe Gill

Açúcar, amêndoa, ovos, farinha… tempo e fogo. 

Estão apresentados os protagonistas principais duma história que vale a pena contar.

Comecemos, pois, pelo açúcar. É certo que antes havia o mel. Era doce e usado na gastronomia. Qb., como se diz nas receitas. Mas foi com a chegada do açúcar a Portugal, em abundância, que os conventos femininos se tornaram verdadeiros laboratórios de doçaria e revolucionaram a cultura gastronómica nacional. 

Conhecido na Europa desde o princípio do século VIII, pela mão dos árabes, o açúcar era um produto raro e caro, visto como medicamento e especiaria. A doçaria árabe utilizava-o, assim como o mel, as amêndoas e as nozes. 

Na idade média, na bacia do mediterrâneo, havia plantações  de cana sacarina na Sicília, no Sul de Espanha e no Algarve. Mas foi com as produções em maior escala na Ilha da Madeira, no século XV e, depois, no Brasil que chegaram à então metrópole grandes quantidades de açúcar, baixando o preço e iniciando o processo de democratização do seu uso. 

As cozinhas dos conventos femininos foram dos primeiros beneficiários deste ingrediente, o que lhes permitiu tornarem-se centros de produção e difusão de doçaria. Trabalhado com o tempo e temperatura certos, produzia diferentes consistências e paladares - os pontos de açúcar. Esta descoberta abriu as portas a inúmeras combinações e receitas, juntando ao açúcar os ingredientes disponíveis, como ovos, farinha e amêndoas, protagonistas acrescidos às vezes de azeite ou banha, leite e especiarias. Fizeram-se “milagres”. O segredo, a gestão do tempo e do calor na correcta união dos produtos. 

Os Conventos eram os lugares certos para serem palco desta revolução gastronómica. Tinham mulheres de reclusão com disponibilidade para experimentar receitas culinárias, abundância de ingredientes e um propósito - agradar ao paladar, dar prazer e mostrar distinção. O prestígio de uma casa monástica era avaliado pela classe social das pessoas que lá tinham ingressado, pelas famílias que naquela ordem tinham capelas e pelo doces. A rivalidade era tal que competiam na sofisticação da doçaria, escondendo receitas. 

Autênticos pólos de povoamento, os conventos e mosteiros tiveram um importante papel na reconquista cristã. Além de casas eclesiásticas dedicadas à oração, geriam grandes áreas agrícolas e também funcionavam como pousadas, para membros da corte ou outros dignatários em viagem. Era pois preciso cozinhar, alimentar quem lá vivia e os hóspedes. Alguns ilustres a quem era preciso causar boa impressão. Os compromissos sociais foram também um pretexto para desenvolver a doçaria. 

Nessa altura, passou a ser comum celebrar actos, ritos e dias festivos com grandes banquetes, oferecidos a Deus. Uma alma sentia-se melhor num corpo bem alimentado, como dizia São Francisco de Sales. E lavavam-no à letra. As necessidades logísticas e as circunstâncias, a facilidade de meios provenientes das receitas das indulgências e missas rezadas, as doações de bens, os excedentes agrícolas foram essenciais para o surgimento da doçaria conventual. 

Mulheres de classes altas que ingressavam nas ordens religiosas traziam receitas das suas casas e contribuíram para aprofundar o gosto, paladar e requinte à mesa. A imaginação, arte e engenho das mulheres no desenvolvimento da doçaria nos conventos foi também uma forma de mostrarem as suas capacidades e exercerem poder. No final de uma refeição, a doçaria (na verdade, supérflua no acto de satisfazer a necessidade básica de alimentação) terminava com requinte o repasto, demonstrando a riqueza do convento feminino. Ao invés, os monges (da Cartuxa e Tibães por exemplo) ficaram mais conhecidos pelos banquetes e cozinha em geral. 

Divididos entre bolos ricos (doces de colher, bolos de fatia) e bolos pobres (biscoitos, bolachas e bolos secos), os doces davam prazer, tornavam-se uma marca de distinção e prestígio, assumiam o papel de embaixadores do convento. Era oferecidos em datas importantes e muitos ganharam nomes ligados ao universo eclesiástico, “Toucinho do Céu” , “Papos de Anjo” ou “Barrigas da Freira”, por exemplo. Mais tarde, com o declínio e perda de importância das ordens, representaram uma fonte de rendimento para muitos dos conventos e pessoas a eles ligadas. 

Para nossa sorte, a extinção das ordens religiosas (1834) não impediu que o receituário e saber fazer de dezenas de conventos fosse espalhado por algumas famílias e chegasse até aos nossos dias com excelentes executantes, de norte a sul do país, incluindo as duas regiões autónomas da Madeira e dos Açores.    

Hoje em dia, organiza-se anualmente no Mosteiro de Alcobaça, com grande sucesso, uma Mostra Internacional de Doces e Licores Conventuais.  

Sugestões de leitura:

Doçaria dos Conventos de Portugal, de Alfredo Saramago e Manuel Fialho, com fotografia de Inês Gonçalves. Assírio e Alvim. 

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