O bolo da esquina do mundo

Bolo de Mel de Cana da Madeira. Foto de Luís Neves

Muita coisa apetece dizer quando se cruza a Arriaga com a Avenida Zarco, no Funchal. Aquele ponto foi uma das  esquinas do mundo mais cosmopolita na longa e paciente caminhada da globalização. 

Expressão eternizada pelo escritor Ferreira de Castro  ou na descrição da azáfama e multiculturalismo daquele cotovelo por Raul Brandão, a esquina do mundo junto ao Café Golden Gate tem uma marca de reunião e sã convivência de tudo o que era sabido e conhecido, de oriente a ocidente.

Ponto de encontro/passagem de geografias e culturas várias e desconhecidas encontra num pequeno, inusitado e despretensioso bolo o herdeiro e melhor metáfora da vivência histórica da esquina do mundo

O Bolo de Mel da Madeira só aqui poderia ter o seu berço. Da chegada da cultura da cana de açúcar nos idos do século XVI na sua viagem de leste para oeste a caminho do nordeste brasileiro resulta o mel de cana, ingrediente produzido nos engenhos que fizeram da Ilha da Madeira um entreposto produtor de acúcar - nesta ilha chamado de ouro branco -  também ele presente na receita. À cidra ou cidrão, erva doce, vinho e farinha de trigo local (cultivada no início do povoamento na Fajã dos Padres), foram acrescentadas especiarias caras inexistentes na Europa e comercializadas pelos portugueses por via marítima, como cravinho da índia, canela, pimenta e outras tantas que misturadas com a gordura, frutos secos e laranja resulta num subtil mas inesperado sabor de um bolo de longa duração que manda a tradição seja partido à mão. 

Em criança, o Bolo de Mel da Madeira era para mim uma espécie de doce mistério que juntava elementos que à partida nunca ligariam. Era raro encontrar-se e chegava quase sempre por visitas que tinham passado em turismo pela região autónoma e o traziam como presente.

A primeira vez que provei quis reproduzir a receita em casa. No livro Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, encontrei a receita e fi-la com os ingredientes possíveis, aldrabando os passos, ingredientes e quantidades. Ficou tão duro como uma pedra! 

Hoje em dia, o Bolo de Mel é um dos ex-libris da Madeira e vende-se por todo o lado. Pela mão da Iolanda, do amar, a terra acabei de ser apresentado a uma versão com mais de duzentos anos de apuro, a receita que a mãe da Iolanda confecionava com mestria e amor e que faz marejar os olhos de saudade à filha. É de produção familiar e chama-se 3 Corações.

Como em tudo na vida, o segredo deste bolo, fruto da esquina do mundo, está na combinação da dose certa de cada um dos ingredientes, quer sejam locais quer tenham vindo de outras partes do mundo encontrar-se numa esquina na Ilha da Madeira.

Sugestões de leitura:

Eternidade, Ferreira de Castro

“… Aquele ângulo do Funchal era, entre as esquinas do Mundo, um dos mais dobrado, em todos os dias do ano, pelo espírito cosmopolita do século. Em viagem, de recreio ou em trânsito para África e Américas, davam volta ao cunhal do Golden Gate, diariamente…, homens e mulheres de numerosas raças, o passo vagoroso, o nariz no ar, as mãos carregadas de cestos, de garrafas e de bordados da Madeira.”

Ilhas desconhecidas, Raul Brandão

“Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai passar: muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e segue o desfile de tipos- pretas de Cabo Verde com foulards vermelhos na cabeça, mulheres planturosas, alemães maciços, portugueses esverdeados e febris que regressam das colónias, velhas inglesas horríveis que vêm não sei donde e partem não sei para onde, desaparecendo para sempre no mistério insondável do mar; criaturas inverosímeis que rodam a toda a força nos automóveis num frenesi que dura momentos e se passa na única rua onde há um café que transborda de luz. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia desapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais e os vendedores mergulham na pacatez da vida quotidiana. O quadro está sempre a repetir-se com a chegada e a partida dos grandes transatlânticos.”    

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