Da Ermelinda à Gleba
Broa de Serpins no Sonho Doce em Serpins. Foto de Filipe Gill
Há sabores que nunca nos largam. São memória. A broa da Ermelinda é um desses casos. Ermelinda, em jovem, tinha trabalhado em casa dos meus avós, nas Várzeas e já mais velha era vizinha do escritório do meu pai. De vez em quando deixava uma broa de milho cozida no seu forno a lenha em cima do capot do carro do meu pai, embrulhada num pano de cozinha, antes do almoço. A broa chegava ainda quente e passados mais de quarenta anos continuo a lembrar-me da textura da crosta, da cor amarelada do miolo e do sabor adocicado do milho, tão diferentes das versões de trigo das padarias.
O milho vindo da América no século XVI foi alimento de muitas gerações, sobretudo no norte e centro do país, onde era misturado com centeio ou trigo, moldado à mão e cozido num forno a lenha.
A boa memória da broa da Ermelinda retraiu-me durante muitos anos de comer este tipo de pão. Até que Serpins, na Lousã, me voltou a pôr na rota da broa. Numa pastelaria chamada Sonho Doce, Rita e a família tratam a broa com um carinho comovente e o resultado da mistura de milho branco e do centeio é uma história de vida e superação contada através do sabor. Visitem e vão perceber.
Desperto e aberto, outros exemplos encontro país fora. Mais a norte, em Mondim de Basto, a padaria Parente da Costa faz uma broa robusta, de milho amarelo com pitada de trigo. Crosta marcada, quase caramelizada, e um miolo com doçura discreta talvez herdada do milho local.
Corte da broa na padaria Parente da Costa, Mondim de Basto. Vídeo de Luís Neves
Até na capital, relembro a Ermelinda quando vou à Gleba, projeto que trouxe a qualidade do pão para a conversa contemporânea. A broa que fazem, com milho galego e fermentação natural tem uma pequena “malandrice” - flocos de mel e um toque de abóbora, que lhe dá personalidade. Em cada pedaço sinto o cheiro dos almoços em casa dos meus pais quando a Ermelinda se fazia presente.
De Serpins a Mondim, de Lisboa à memória, compreendo que a broa portuguesa não é uma só… é tantas quantas as vivências e experiências de cada um de nós.
Há pouco tempo encontrei uma das filhas da Ermelinda lá nas Várzeas. Contei-lhe das memórias que tinha da broa da sua mãe. E perguntei-lhe, na esperança de encontrar um resquício de um tempo passado, se ela cozia broa. “Já não tenho forno e dá muito trabalho”, respondeu-me.
A broa da Ermelinda é uma memória, mas o que ela me deu continua inteiro e encontra-se, felizmente, em muitas terras por esse Portugal fora.
Sugestão cultural: A música portuguesa a gostar dela própria, em Serpins, é uma iniciativa de recolha e registo audiovisual da música tradicional e popular portuguesa e também de cultura gastronómica do país. Vale a pena ir lá visitá-los a Serpins e ir aproveitar para provar a broa.